Procuraremos seguir, neste e nos demais artigos, a nível mais abstrato, o próprio processo de tecer, visando estabelecer leis de formação na composição dos padrões gerados pela técnica repasso. Para isso será considerado a transcrição numérica do código repasso (veja exemplo abaixo) que contém as indicações necessárias tanto para a passagem dos fios do urdume nas folhas de liços como para a sequência de pedalagem durante a execução da trama.
Para maior comodidade na leitura e compreensão do assunto transcrevo, do artigo inicial, como ocorrem essas indicações. Recomendo, se você ainda não o fez, ler o artigo inicial.
- Leitura e passagem dos fios do urdume: da direita para a esquerda (pode também ser feita da esquerda para a direita) e de cima para baixo. Ou seja, no caso do exemplo acima, será passado o primeiro fio no último olho do liço 4, o segundo no último do 2, o terceiro no penúltimo do 4, o quarto no penúltimo do 2, o quinto no antipenúltimo do 4, o sexto no antipenúltimo do 2 (os seis últimos traços verticais do código), e assim sucessivamente. Ao término da passagem do código (par de liços 2 e 4 mais a esquerda repetidos três vezes) o processo retorna ao início (à direita) se repetindo até ocupar toda a largura do urdume ou a largura do tecido pretendido. Verifica-se, portanto, a existência de uma propriedade cíclica no uso do código. O mesmo se aplica para a sequência de pedalagem;
- Leitura e a sequência de pedalagem: Encontra-se transcrita abaixo do código (na prática não existe esta notação, aqui utilizada apenas para facilitar a explicação), indicando que será pisado o par de pedais 24 três vezes, o par 23, também 3 vezes, e assim por diante. Observe que a leitura do código para a sequência de pedalagem é feita da esquerda para a direita.
Outras informações do artigo inicial serão repetidas visando ganhos na compreensão. Isto posto, vamos adiante.
A técnica repasso é executada em teares com quatro pedais. Cada pedal está amarrado a uma folha de liços por onde se distribuem os fios que compõem o urdume.
O processo de tramagem é levado a efeito, pisando-se, sempre e de cada vez, dois pedais ao mesmo tempo. Efetivada a pisada de um dado par de pedais, os fios distribuídos nas folhas de liços correspondentes descem, enquanto, simultaneamente, os fios passados nas duas restantes sobem, dividindo o urdume em duas camadas. Entre estas é jogada a lançadeira (veja artigo inicial), o instrumento que contém o fio que executa a trama.
Desse modo, o fio da trama passará, de uma só vez, sobre todos os fios do urdume baixados e sob todos os levantados, proporcionando o entrelaçamento que comporá o tecido.
O urdume após armado, conforme indicado acima, torna-se um elemento imútavel durante todo o processo de tecer. Já a sequência de pedalagem, composta de pares de pedais pisados numa dada frequência, pode ou não seguir as especificações do código repassso, dando margem, em vista de sua flexibilidade, a uma certa inventividade. Frise-se, que como regra geral, os tecelões seguem as especificações estabelecidas no código.
Por essas razões, a partir daqui todo o detalhamento se desenrolará com ênfase na sequência de pedalagem – uma das leituras do código – mas tendo como pressupostos que o urdume é montado segundo o mesmo código e todo o processo de entrelaçamento antes explicado.
Relacionaremos, agora, a composição do desenho ou padrão (veja exemplos) por outros instrumentos que não o tear, à prática de tecelagem. O problema, então, se resume em como “preencher” uma matriz de n linhas e 2n colunas. Isto porque a cada par de pedais pisado – que corresponde a uma linha da matriz – equivalem a dois fios do urdume passados nas folhas de liços – que na matriz corresponde a duas colunas (figura 1).
A regra, portanto, consiste em saber o que, em cada linha da matriz, deve ser “marcado” ou não, o que corresponde na prática do tecer a saber sobre e sob que fios do urdume a trama passa a cada pedalagem. Entenda como marcado, a cor do fio da trama. Para os fins deste artigo utilizaremos a cor preta para a trama e o fundo branco para o urdume.
Serão marcados com preto todas as posições em que os números de cada linha (que representam os pedais pisados) coincidem com os números das colunas (que representam os fios do urdume). Assim, as marcações em preto indicarão a passagem do fio da trama sobre os fios do urdume e os espaços em branco o contrário.
Por exemplo, na figura 1, a primeira linha designada pelo par de pedais 14 tem todas as posições em que aparecem o 1 ou o 4, nas colunas, marcadas. Adotamos dois tipos de marcação – ponto e retângulo – apenas para melhor ressaltar o desenho. O ponto é utilizado quando não existe nenhum outro liço, antes ou após, que corresponda a um dos pedais.
A composição de um padrão se dá, no máximo, pelo simples preenchimento e distribuição de quatro linhas distintas – ou seja quatro pares de pedais entre os seis possíveis. As linhas variam de caso a caso, conforme a colocação dos fios do urdume nas quatro folhas de liços (números no sentido horizontal na figura 1). Na prática, as quatro linhas mencionadas, correspondem à pedalagem dos quatro pares de pedais 13, 14, 23 e 24. Os dois restantes – 12 e 34 – são usados para a passagem do fio de ligação – normalmente intercalado com um par do código – que servem para construir o tecido base sobre o qual os fios da trama se destacam para compor o padrão.
À parte do padrão compreendida entre os números nos sentidos horizontal e vertical – que correspondem às indicações contidas no código repasso – denominaremos de MOTIVO GERADOR (MG). Isto porque (lembra da propriedade cíclica mencionada no ínicio do artigo) o padrão como um todo é obtido por meio de repetições sucessivas do MG ou de parte dele no final, dependendo da largura do urdume ou do tecido a ser confeccionado.
É essa utilização reiterada do código repasso na enfiação dos fios do urdume e na pedalagem, que proporciona a composição do padrão tecido. Devido a esta propriedade cíclica sómente a sequência de pedalagem que corresponde ao MG será considerada para a definição das regras e classes de padrões.
Como consequência, podemos iniciar a pedalagem e a enfiação dos fios do urdume em qualquer ponto do código, desde que a ordem dos pares e dos fios seja mantida.
Por um ELEMENTO SIMPLES (ES) da sequência de pedalagem se entenderá um par de pedais pisado numa certa frequência (uma vez, duas vezes, …). Assim, cada tripla da sequência de pedalagem apresentada abaixo do código repasso no início do artigo, representa um ES.
O efeito visual gerado por um ES (por exemplo, 314), na suposição de que o urdume esteja armado apenas com os fios a ele correspondente é um retângulo como exibido na figura 1.
Já com o urdume armado segundo as especificações do código repasso da figura 1, o ES 314 gera toda a faixa inicial.
As diversas maneiras como se distribuem os ES nas sequências de pedalagem dão origem aos mais variados motivos geradores. Dentre estes destacam-se, por sua regularidade, três CLASSES BÁSICAS de sequências de pedalagem: a XADREZ (Xd) , a DIAGONAL (D) e a XIS (X) – diagramadas na figura 2.
As classes básicas foram, assim denominadas, de modo a se aproximar o máximo possível dos efeitos visuais gerados por seus respectivos MG. Denominaremos cada retângulo verde da figura 2 uma COMPONENTE da classe, pois é o modo específico como se combinam que caracteriza cada uma das classes mencionadas.
A COMPONENTE pode ser um ES – e assim denominada uma COMPONENTE SIMPLES – ou uma sequência de pedalagem satisfazendo à seguinte propriedade: alternância de dois pares de pedais pisados, de cada vez, com a mesma frequência ou não – denominadas COMPONENTE COMPOSTA. A figura 1 é um exemplo de COMPONENTE COMPOSTA, cuja sequência de pedalagem é descrita abaixo:
314 113 314 113 314
Para melhor entender o conceito veja um exemplo de um padrão constituído por COMPONENTES COMPOSTAS.
A classe de sequências de pedalagem constituída sómente de COMPONENTES SIMPLES ou ES será denominada de SIMPLES (S) e quando constituída de COMPONENTES COMPOSTA será denominada de COMPOSTA (C).
Assim, os exemplos mostrados na definição das CLASSES BÁSICAS são da classe XADREZ SIMPLES (XdS), DIAGONAL SIMPLES (DS) e XIS SIMPLES (XS), respectivamente. O exemplo anterior pertence à classe XADREZ COMPOSTA (XdC).
Uma variável com influência considerável no aspecto final do MG e consequentemente de todo o padrão, é a frequência com que são pisados os pares de pedais. Uma sequência de pedalagem pertencente a uma classe SIMPLES será UNIFORME (U) quando todos seus pares de pedais forem pisados o mesmo número de vezes (exemplo) e será VARIÁVEL (V) em caso contrário (exemplo). Apesar da aparência distinta dos padrões gerados nos dois últimos exemplos, veremos no próximo artigo que ambos têm a mesma regra de formação e pertencem a classe DIAGONAL SIMPLES.
O que se entenderá por uniformidade ou variabilidade de uma sequência de pedalagem de uma classe COMPOSTA será esclarecido, também, no próximo artigo.
A combinação dos ES – pares de pedais pisados numa certa frequência – obedece, em geral, nas sequências de pedalagem ao seguinte PRINCÍPIO DE CONTINUIDADE: os pares de pedais subsequente e antecedente, que fazem parte dos ES, devem ter um pedal em comum.
Portanto, de acordo com esse princípio, onde não se leva em conta a frequência teremos que:
- 13 deve ser seguido ou por 14 ou por 23
- 14 deve ser seguido ou por 13 ou por 24
- 23 deve ser seguido ou por 13 ou por 24
- 24 deve ser seguido ou por 14 ou por 23
Em todos os exemplos até então apresentados o princípio é aplicado.
A descontinuidade nas sequências pode ou não gerar “erros” nos padrões. A sequência de pedais que gera este padrão apresenta uma descontinuidade em seu início. Esta sequência corrigida, substituindo-se o ES inicial 323 pelo ES 324, gera este padrão (o código repasso é exibido no final, neste e em todos os exemplos. Compare os dois códigos.). Observa-se, assim, que um único ES mudado em uma sequência gera desenhos com diferenças acentuadas. Já este padrão, apesar de gerado por uma sequência com descontinuidades, pode ser considerado correto.
Além do mais, é raro, mas perfeitamente possível, uma sequência contínua gerar um desenho “errado” (mal formatado).
Essas considerações ressaltam os graus de dificuldade e complexidade do assunto em tratamento.
No próximo artigo tentaremos elucidar, a partir da compreensão das leis de formação dos padrões, questões como essas. AGUARDEM!
Maria Ercilia Rolim
maio 29, 2008 @ 00:41:26
Gostei imensamente de seus artigos sobre a técnica de repasso.
Também achei uma pena não estar no blog o trabalho “Regularidade do trançado entrecruzado em diagonal”.
Infelizmente é muito raro encontrarmos análises matemáticas de assuntos ligados a artesanato. Só havia visto um referente a alguns trabalhos de patchwork usando a técnica seminole (não tão profundo quanto o seu).
Parabens.